As actividades das sociedades modernas originam resíduos diversos que deveriam ser depositados em condições seguras, para não se perturbar o equilíbrio ecológico. Para alguns desses resíduos, ainda não foi encontrada uma solução conveniente: por exemplo, grande parte das matérias plásticas não são degradáveis, os sais tóxicos de mercúrio não se decompõem, montes de automóveis e de contentores metálicos “enferrujam” nos parques de sucata. Por outro lado, vivemos numa atmosfera carregada de substâncias nocivas, como é o caso de diversos gases, aerossóis e produtos de escape de veículos a motor.
Produção anual de resíduos na União Europeia |
Os países da União Europeia produzem mais de 2000 milhões de toneladas de resíduos sólidos e líquidos por ano, entre resíduos agrícolas, esgotos e águas residuais, lixos domésticos e resíduos industriais, alguns dos quais químicos, que são tóxicos, na sua maior parte. Esta massa de resíduos, cuja produção aumenta 2 a 3% por ano, põe problemas graves de poluição, em particular quando os contaminantes tóxicos não se decompõem.
Quanto aos resíduos resultantes da produção de electricidade a partir de centrais termoeléctricas que queimam combustíveis fósseis, é de referir, por exemplo, que uma central termoeléctrica a carvão com uma potência de 1000 MWe, durante 30 anos de funcionamento, consome cerca de 75 milhões de toneladas de carvão e produz, além de milhões de toneladas de resíduos gasosos, 15 milhões de toneladas de cinzas, cujo volume é o de um paralelepípedo com 1 quilómetro quadrado de base e 15 metros de altura.
É neste contexto que deve ser considerado o impacte ambiental das centrais nucleares, em particular no tocante aos resíduos radioactivos. Embora tenha havido progressos substanciais neste domínio, a verdade é que o assunto continua a despertar a atenção da opinião pública, na Europa e não só, sobretudo no que se refere à armazenagem dos resíduos radioactivos de vida longa.
Mas, afinal, que se entende por resíduos radioactivos? Na prática, esta expressão é utilizada para designar os resíduos cuja gestão exige um sistema especial de controlo, isto é, um sistema que envolve, em particular, o registo dos resíduos produzidos e o licenciamento das instalações onde se trabalha com materiais radioactivos.
Quanto à sua classificação, os resíduos radioactivos podem ser incluídos num pequeno número de categorias, de acordo com (1) as concentrações dos radionuclidos presentes nos resíduos, e (2) os intervalos de tempo durante os quais permanecem radioactivos, os quais estão directamente relacionados com o período de semi-desintegração dos radionuclidos em causa:
Resíduo de baixa actividade: resíduo que contém baixas concentrações de radionuclidos, não exigindo uma protecção especial (a adopção de medidas simples, como, por exemplo, o uso de luvas de borracha, é suficiente). Este tipo de resíduos é produzido em instalações nucleares (minas de urânio, fábricas de combustível nuclear e centrais nucleares, por exemplo) e em laboratórios hospitalares, industriais e de investigação. Entre estes resíduos figuram toalhas de papel, seringas, luvas de borracha e filtros de ar.
Resíduo de média actividade: resíduo que contém concentrações mais elevadas de radionuclidos, requerendo o uso de protecção durante as operações envolvidas na sua manipulação (em geral, escudos metálicos ou de betão e dispositivos de manipulação à distância). Este tipo de resíduos é produzido em centrais nucleares e em instalações de reprocessamento – onde o chamado combustível nuclear irradiado (já utilizado em reactores nucleares) é tratado quimicamente para remover os resíduos e recuperar o combustível que ainda pode ser aproveitado. Algumas das fontes radioactivas utilizadas no tratamento de cancros, na esterilização de equipamento médico e na indústria também requerem protecção, pelo que são incluídas neste grupo de resíduos. Tipicamente, esta categoria de resíduos inclui sucatas metálicas, resinas e fontes radioactivas quase esgotadas.
Resíduo alfa: resíduo radioactivo de baixa ou média actividade que contém emissores de partículas a, frequentemente com períodos de semi-desintegração longos. Embora seja muito fácil arranjar protecção contra os efeitos das partículas a, estes resíduos são potencialmente perigosos pelo facto destas partículas terem uma elevada ionização específica (o maior perigo reside na possibilidade de as emissões ocorrerem no interior do corpo humano, em resultado de uma eventual contaminação interna). Os resíduos alfa provêm de alguns laboratórios de investigação científica, de fábricas de combustível nuclear e de instalações de reprocessamento de combustível irradiado.
Resíduo de alta actividade: resíduo que contém as mais elevadas concentrações de radionuclidos. A intensidade da radiação emitida é tão elevada que o resíduo aquece e assim permanece durante algumas centenas de anos, até a maior parte da radioactividade decair. Este tipo de resíduos requer um arrefecimento apropriado e protecção pesada, isto é, barreiras (naturais ou artificiais) de grandes dimensões e/ou construídas com materiais de elevada densidade e dispositivos de manipulação à distância. Os resíduos de alta actividade são produzidos essencialmente nas fábricas de reprocessamento do combustível irradiado. De certo modo, pode dizer-se que os resíduos de alta actividade são as “cinzas” resultantes da “queima” do urânio. O próprio combustível “queimado”, ainda não reprocessado, é considerado como resíduo de alta actividade.
É de referir que os resíduos de baixa ou média actividade podem ser de vida curta ou de vida longa. Por seu turno, quando se fala de resíduos de alta actividade, é suposto serem de vida longa.
[Se a radioactividade de um resíduo radioactivo diminuir para níveis comparáveis ao dos materiais radioactivos naturais num intervalo de tempo inferior a algumas centenas de anos (300–500), o resíduo é considerado de vida curta. Se o intervalo de tempo necessário para que a radioactividade diminua para os níveis referidos acima for superior a algumas centenas de anos, o resíduo é classificado como sendo de vida longa.]
Convém ter presente que há centenas de tipos de radionuclidos, com períodos de semi-desintegração que podem ir desde fracções de segundo até milhões de anos, e que os nuclidos radioactivos se vão transformando, ao longo do tempo, até se converterem em nuclidos estáveis – os radionuclidos com período curto transformam-se rapidamente, mas a transformação dos radionuclidos com período elevado pode ultrapassar, em muito, a escala temporal da vida humana.
Ao longo do tempo, um resíduo de alta actividade transforma-se em resíduo de média actividade e, mais tarde, de baixa actividade. Por conseguinte, há uma distinção muito importante entre resíduos radioactivos – que eventualmente deixam de ser perigosos, embora ao fim de intervalos de tempo mais ou menos longos – e resíduos químicos tóxicos, alguns dos quais permanecem tóxicos para sempre.
Os princípios e exigências relativos às questões ambientais suscitadas pelas aplicações da energia nuclear para fins pacíficos têm inspirado, desde as primeiras décadas do século XX, recomendações, regulamentos e sistemas de controlo, a nível internacional e nacional.
O principal objectivo da gestão de resíduos radioactivos consiste em proteger as gerações actuais e futuras contra os efeitos de exposições inaceitáveis a radiações provenientes de materiais radioactivos produzidos pelo Homem. Na prática, isto consegue-se recorrendo a uma ou várias barreiras para conter os resíduos. Estas barreiras desempenham duas funções: (1) protegem as pessoas contra os efeitos das radiações emitidas pelos resíduos, e (2) evitam ou retardam a migração dos radionuclidos até à, e na, biosfera, garantindo que não chegam até ao Homem em concentrações inaceitáveis.
Uma sequência típica de operações de gestão de resíduos radioactivos é a seguinte:
• recolha dos resíduos;
• separação por categorias;
• tratamento (por exemplo, redução do volume, incineração dos resíduos sólidos ou evaporação e precipitação química dos resíduos líquidos);
• imobilização dos resíduos tratados numa matriz – cimentos, betumes ou polímeros, no caso dos resíduos de baixa e média actividade, e vidro, no caso de resíduos de alta actividade – que é, em geral, solidificada em contentores com robustez mecânica adequada, grande resistência ao fogo, baixa solubilidade e bom comportamento a longo prazo;
• transporte para instalações de armazenagem temporária ou para depósitos;
• armazenagem temporária nos locais de produção ou em instalações centralizadas;
• depósito em instalações próximas da superfície da Terra ou em formações geológicas profundas.
Os resíduos de alta actividade são os que continuam a despertar mais atenção na opinião pública, apesar de já haver mais de meio século de experiência de tratamento e armazenagem deste tipo de resíduos . A propósito desta questão, é de referir, a título de exemplo, que uma central nuclear de 1000 MWe do tipo mais comum – PWR, ou seja, reactor a água pressurizada – origina aproximadamente 30 toneladas de combustível irradiado por ano. Este combustível é, depois, submetido a processos de separação, concentração e solidificação dos nuclidos radioactivos, em instalações de reprocessamento. No final, o volume dos resíduos de alta actividade resultantes destas operações fica reduzido a cerca de 3 metros cúbicos. Isto significa que, ao longo da vida da central nuclear – cerca de 30 anos –, o volume dos resíduos sólidos de alta actividade é apenas da ordem de 100 metros cúbicos. Ainda a título ilustrativo, é de salientar que se estima que o programa nuclear francês, que é particularmente importante, terá produzido, até ao final do século XX, resíduos sólidos de alta actividade cujo volume não é superior ao de uma piscina olímpica. Por conseguinte, não se está perante um problema de armazenagem de resíduos que justifique a procura urgente – e, porventura, precipitada – de soluções.
A imobilização, numa matriz adequada, dos resíduos tratados é, como se viu, uma das operações a pôr em prática num programa de gestão de resíduos radioactivos. O vidro é um dos materiais aplicáveis na solidificação dos resíduos radioactivos de alta actividade porque estes se combinam facilmente com os respectivos componentes. Certos vidros, tais como o Pirex, têm uma elevada estabilidade, resistindo bem ao calor, às acções químicas, às radiações e às acções mecânicas. Mesmo sujeitos a uma corrente de água quente, à temperatura de 40 graus Celsius, seriam necessários 100 anos para dissolver cerca de 1 milímetro de espessura. Além disso, é bem conhecida a capacidade dos sólidos para conservarem corpos no seu interior, durante grandes lapsos de tempo: no âmbar, encontraram-se, em perfeito estado de conservação, insectos fósseis com vários milhões de anos; dos glaciares, emergiram corpos de mamutes com mais de 30000 anos, com carne ainda fresca.
Os resíduos, depois de vitrificados, são encerrados em contentores de aço inoxidável concebidos para resistir à corrosão. Durante os primeiros 30 a 50 anos, estes contentores podem ser armazenados em piscinas, ou em câmaras devidamente ventiladas, nas instalações de reprocessamento. Após este intervalo de tempo, a libertação de calor – originado pelas radiações emitidas pelos resíduos nos materiais adjacentes – diminuirá a ponto de permitir que os contentores sejam transferidos para cavidades efectuadas em formações rochosas, centenas de metros abaixo da superfície do solo, sendo então suficiente o arrefecimento natural.
De acordo com estudos efectuados no sentido de aumentar as precauções no acondicionamento dos resíduos a longo prazo, considera-se que os contentores de aço deverão ter uma protecção suplementar contra a corrosão resultante de uma eventual penetração de água subterrânea nas cavidades rochosas. Essa protecção adicional poderá ser conseguida com 10 centímetros de chumbo, revestido exteriormente por 6 milímetros de titânio. A dissolução do titânio em água salina, à temperatura ambiente, é da ordem de 0,0013 milímetros por ano. Assim, a camada de titânio poderá durar cerca de 4000 anos. Note-se que foram encontrados, no Mediterrâneo, objectos romanos de chumbo que, apesar de terem permanecido submersos durante 2000 anos, apresentavam uma erosão pouco significativa.
Sistema de barreiras múltiplas para armazenagem de resíduos radioactivos a grande profundidade |
A Natureza oferece-nos um bom exemplo de como trata, ela própria, os resíduos radioactivos, em termos de confinamento, a longo prazo. Há cerca de 2000 milhões de anos, e graças a uma extraordinária conjugação de circunstâncias, funcionaram reactores nucleares naturais, durante cerca de 500000 anos, num jazigo de minério de urânio situado perto de Oklo, no Gabão. Como todos os reactores nucleares, também estes originaram produtos radioactivos. As investigações científicas têm mostrado que estes produtos se foram desintegrando, sem se afastarem significativamente do local onde se formaram. Este episódio da história da Terra, descoberto em 1972, fornece úteis motivos de reflexão sobre as preocupações associadas à armazenagem de resíduos radioactivos em formações geológicas apropriadas.
Mina de urânio de Oklo, no Gabão, onde funcionou o mais antigo reactor nuclear (natural) conhecido |
Finalmente, é de referir que uma outra abordagem das questões relacionadas com a gestão de resíduos radioactivos é a que se baseia no conceito de separação e transmutação de certos radionuclidos Este conceito tem a ver com a possibilidade de proceder, primeiro, à extracção química de radionuclidos de vida longa contidos nos resíduos e, depois, à sua transformação em radionuclidos de vida curta, por irradiação com neutrões, num reactor nuclear ou num acelerador de partículas. Há dois tipos de exemplos que ilustram bem a finalidade a atingir:
1. O tecnécio-99 e o iodo-129 são produtos de cisão com períodos de semi-desintegração muito elevados (200 mil anos e 16 milhões de anos, respectivamente) que põem problemas de isolamento na bioesfera porque se dissolvem rapidamente na água e se difundem facilmente nos ecossistemas. Por absorção de neutrões, os respectivos núcleos transformam-se em tecnécio-100 e iodo-130 (períodos de semi-desintegração de 16 segundos e 12 horas), que decaem para isótopos estáveis de ruténio e de xénon, em muito pouco tempo.
2. Uma outra classe de resíduos radioactivos que podem ser transformados, após separação, diz respeito a elementos radiotóxicos da série dos actinídeos (89 ≤ Z ≤ 103), em particular os isótopos de plutónio, neptúnio, amerício e cúrio com vida longa (períodos de muitos milhares de anos, nalguns casos). Submetidos a irradiação com neutrões, os núcleos destes isótopos sofrem cisão nuclear, dando origem a produtos de cisão de vida curta (períodos da ordem de 30 anos ou menos, na maior parte dos casos).
O conceito de separação e transmutação tem, pois, potencialidades fáceis de apreender. Todavia, para o pôr em prática, é necessário resolver problemas extremamente complexos. Alguns países da OCDE voltaram a interessar-se por este assunto, a partir de 1989, consagrando-lhe um esforço significativo em matéria de investigação e desenvolvimento, na expectativa de que tal via possa contribuir para resolver os problemas postos pela gestão dos resíduos radioactivos, através da redução da proporção dos nuclidos de vida longa. Ela não substitui, porém, o recurso ao depósito de resíduos radioactivos, em profundidade, em formações geológicas estáveis. Até que se possa chegar a conclusões definitivas, o interesse da separação e transmutação de certos radionuclidos terá de ser demonstrado dos pontos de vista estratégico, científico, tecnológico e económico, assim como da segurança.
Fonte:
Energia Nuclear – Mitos e Realidades
Jaime Oliveira & Eduardo Martinho
(Editora O MIRANTE, 2000)
Para esclarecimento de conceitos, consultar: